Aqui estou eu, por esse período
interminável no escuro, esperando o próximo nome que teria sua alma levada
embora do plano terreno. Não sabia a quanto tempo eu já era um ceifador, não
tinha mais muitas das minhas memórias, só tinha as memorias dos meus erros e falhas
de quando era vivo. Era forçado a revivê-las sempre, pois eram minha única
companhia.
Isso nunca me deixava esquecer o
porquê de eu estar aqui, vivendo este purgatório. Um suicídio. Tirar uma vida,
mesmo que seja a sua própria, sem razão, era motivo de punição.
Estava parado no escuro, sem
roupas, apenas com a veste preta pela qual ceifadores são conhecidos e
eternamente segurando a foice. Não, ela não é o instrumento de matar, ela só
desconecta a alma do plano terreno, e assim podemos levá-la embora.
Comecei sentir a queimação no meu
braço esquerdo, o nome da próxima pessoa marcado na minha pele. Era hora de
trabalhar novamente.
É uma função muito triste levar
pessoas embora. Poucas são as que realmente estão prontas, sentem que terminaram
sua passagem na terra. Na grande maioria separamos amores, diminuímos famílias,
tiramos pais de seus filhos, ou filhos de seus pais, destruímos sonhos...
Quando menos me dei conta já
estava na frente da casa da próxima pessoa. Como sempre, para a morte, as
portas estão destrancadas. Vou caminhando até o quarto em busca da alma que
deveria levar comigo, porém...
- Quem é você? Como entrou aqui? Por
que está fantasiado de morte? – Questionou como um raio ao me ver.
Perguntas para o representante da
morte são normais, mas todos sabem já que estão mortos. As vezes barganham, as
vezes entram em negação. Mas dessa vez algo parecia diferente, não parecia uma
simples negação a morte.
- Eu sou o representante da morte.
– Comecei – Você morreu e vim levar...
Parei imediatamente. Estou a
tanto tempo fazendo isso, que não me dei conta da coisa errada. Ela não havia
morrido. Ainda. Reconheci os sinais, ela estava com tudo pronto para um
suicídio. Como eu havia feito.
- Você não está morta. -Falei
baixo, como se para notar a realidade dos fatos.
Congelada, com os remédios ainda
na mão, ela me olhou.
- Já vou estar, se você veio me
buscar, pode esperar que já vou contigo.
Senti medo, ver meu erro sendo
cometido de novo, não podia deixar acontecer novamente, não importa a punição,
já estou no purgatório mesmo o que poderia ser pior?
- Não faça isso. A vida é nosso
maior presente. – Comecei.
- PRESENTE? Acho que você não tem
noção de como é estar vivo. Você só tem que carregar que morreu.
- Talvez eu realmente tenha me
esquecido de como é estar vivo. Não sei nem meu nome mais. Mas sei de algo
importante, é na vida que a gente pode aproveitar.
Ela fez menção a me interromper.
Ergui a mão em sinal que ia continuar. Eu precisava continuar.
- Eu me matei, não sei quanto
tempo atrás mais. Eu tinha problemas sem solução, perdi aqueles que chamava de
amigos, vi meus sonhos morrerem, minha vida perder sentido. Até que decidi que
não valia a pena viver.
- Se você me entende, por que
está sendo advogado da vida aqui?
- Porque eu não poderia estar
mais errado. Somente na vida podemos achar solução para nossos problemas,
apenas vivos podemos encontrar novos amigos, criar novos sonhos, até mesmo
achar novos problemas para resolver. Podemos mudar de direção, começar tudo de
novo, fazer dar certo de outros jeitos. Depois de morto só te sobra lamentar o
que você poderia ter feito.
- Vida – segui dizendo – é como
um relógio, só anda pra frente, e se para, não tem mais o que ser feito com ele.
Você sempre pode tentar de novo, mudar tudo, fazer diferente, mas só enquanto
estiver viva.
Ela soltou os remédios, o alívio
me acometeu. Me senti humano de novo, pela primeira vez, desde que esse
purgatório começou.
- Queria ter um amigo como você.
- Você pode. – eu disse dando um
sorriso – Seres humanos são tão vastos e tão diferentes entre si, que com
certeza você vai achar alguém além de mim pra te dar sermão.
- Obrigada.
E depois dessa única palavra eu fui
tirado de lá. Ela havia desistido, não havia mais morte ali, não tinha porque
um ceifador estar ali. Agora era hora de eu encarar a punição por evitar uma
morte.
Quando abri os olhos, não me vi
no breu de sempre, não tinha mais as marcas dos nomes que ceifei marcados na minha
pele, eu não era mais um ceifador. Parece que ensinar minha lição era minha libertação.
Posso seguir para o descanso em paz finalmente.