A carta
Isso que escrevo hoje não é uma nota de suicídio, não é uma desistência da luta.
Todos aqueles que me conhecem já sabem, eu amarrei
uma corda em mim, não chego ao fundo desse poço, mas posso ficar balançando no
poço pela corda por muito tempo.
Esta carta, extremamente desmotivacional. É uma carta de mim pra eu mesmo, do meu eu atualmente deprimido, para o meu eu futuro são.
‘Devo estar ficando louco, escrevendo uma carta
pra mim mesmo. Imagina se minha esposa vê isso. Devia parar por aqui.’ – Mas ao
mesmo tempo que pensava isso, as palavras da carta fervilhavam na sua cabeça. –
‘Mas se já comecei...’
– Droga! – Falou em voz alta, se rendendo as
palavras em sua mente. -
Já deve fazer quase duas décadas que vamos
dormir pensando como seria morrer, como ficaria o mundo, nossas coisas, nossos
segredos, amores, família. Não importou o tratamento, ou o quão bom estivesse
tudo, é sempre um pensamento que volta quando nos deitamos.
Ninguém jamais desconfiaria, quando estamos
deitados depois de uma noite feliz, que este é o pensamento da minha mente.
Mas acho que você nota que o problema não é
questionar quando se está quase dormindo se vale estar vivo, ou o porquê de
estar vivo. Isso é um problema quando é ao longo do dia. Várias vezes...
Quase um transe. Quase como se fosse uma
entidade sussurrando ao seu ouvido.
‘Uma entidade. Não pude evitar de refletir um
pouco sobre essa escolha. Pareceu um pouco filme de terror quando uma assombração
escolhe um alvo. Estaria eu infectado com um mal espiritual?’ – Fitou o vazio,
olhou novamente para o papel e se deixou mergulhar nas palavras. -
Viver dá trabalho, dói, cansa, passamos a maior
parte do dia nos matando pra aproveitar o que? Duas horas livres por dia? Essa
conta não fecha né.
Daí você vai argumentar sobre o final de semana,
que tem todo o tempo pra você. Não seja iludido, mesmo em sã consciência,
sabemos que o final de semana não dá tempo de resolver os problemas e descansar.
Porque sempre ficamos resolvendo problemas adultos como, limpar a casa, dar banho
nas crianças, fazer comida. A ilusão do repouso nos move.
Ah, como queria soluções mágicas para todos os
problemas. Espero que você aí no futuro as tenha encontrado, espero que a vida esteja
mais gentil, que as coisas tenham achado seu lugar, e que aquela felicidade
perdida já tenha aparecido.
Gostaria de dizer, que eu listei os problemas numa
folha e deixei para você. Mas sempre que me vejo considerando não viver mais,
passei a listar os motivos pelos quais eu vivo. Deixei essa lista pra você
também. Espero que ambas ajudem.
‘Por um momento parece que estou falando com
outra pessoa. Como se não fosse mais eu mesmo, como se o eu atual não fosse
mais o eu de sempre.’ – Esse pensamento inundou sua mente. – ‘Estaria eu agora
tão diferente que seria uma outra pessoa? Se sim, onde está o outro eu?’
Olhou o papel com suas palavras, pensou sobre o
seu eu que leria essas palavras no futuro. Refletiu sobre o quanto viver era
exaustivo pra si. Mas tinha certeza que não era pro seu outro eu. Estava certo de
que seu outro eu amava a vida.
‘Doido.’ – Pensou, e antes que entregasse sua
mente a procrastinação, decidiu por terminar a carta.
Uma coisa. Estou aqui, diariamente, lutando
contra tudo isso. Sobrevivendo a todos esses fantasmas, assombrações. Se lutei
dias suficiente para que você possa ver esta carta, não desista, não quero
voltar a lutar contra o mundo pra seguir vivo. Assuma o controle, leve a vida, seja
forte, resolva problemas, enfrente os desafios com disposição. Sei que consegue,
já o fez antes.
Adoraria uma aposentadoria da vida. E agora só
você pode me dar. Te peço com carinho que assuma e me deixe descansar, de
preferência, para sempre.
Com amor do teu eu deprimido.
Fonte da imagem: Sharp